quinta-feira, 17 de abril de 2008

Na Salinha: O LABIRINTO DO FAUNO

Estréia este mês, dia 21, segunda-feira, às 21 horas, na HBO (Net e Sky).


Uma Radiografia da Condição Humana

Cotação: * * * *


A alegoria é um tipo de narrativa de duplo sentido, baseada na transferência e personificação, difícil de ser representada no cinema. Apesar de ser uma forma artística baseada em truques, capaz de dar vida aos maiores delirios dos cineastas mais diversos, a evolução tecnológica impõe um realismo à linguagem cinematográfica que se contrapõe ao simbólico. A linguagem teatral, a princípio, aceitaria melhor essa estilização, por seu caráter despojado e cru.

Por estas e outras razões O LABIRINTO DO FAUNO (El Laberinto Del Fauno), do mexicano Guillermo del Toro, realizado em 2006, foi uma gratíssima surpresa. O enredo, repleto de citações a filmes fantásticos e à literatura de conto de fadas, se inicia numa distante região da Espanha, em 1944, ainda assolada por combates da Guerra Civil, para onde se mudam Carmen (Ivana Baquero) e Ofelia (Ariadne Gil, um achado), mãe e filha. Procurando trazer encanto ao cotidiano, enquanto aguarda a chegada de seu padastro Vidal (Sergi Lopez, imponente e assustador), um sádico oficial fascista incumbido de dizimar os guerrilheiros locais, a garota descobre nos majestosos jardins da imensa mansão um labirinto que lhe abre um mundo de fantasias, que acabará infleunciando a vida de todos em volta. Lá ela conhece o Fauno (o mímico Doug Jones), um ser meio humano e meio bode, que a convence ser uma Princesa que necessita realizar três tarefas para retornar ao seu reino maravilhoso.


Um dos aspectos mais originais da obra é esmiuçar um contexto político sob a luz de um universo encantado. Mas não se trata apenas de uma válvula de escape, pois aqui a realidade, ao invés de apenas provocar a fuga, se torna a matéria-prima a ser moldada pelo sonho. Mesmo em seus aspectos sombrios e carregados de metáforas, a fábula de del Toro (que já fizera uma experiência similar em A Espinha do Diabo, em 2001), com roteiro original do próprio, busca o equilíbrio oferecendo aos olhos do público um requinte visual excepcional.

A iluminação carrega nas cores e no sombreado visando reproduzir as ilustrações dos antigos livros de fábula. As citações trazem o clima dos filmes do britânico Terry Gilliam (O Pescador de Ilusões, Os 12 Macacos) e do norte-americano Tim Burton (Edward Mãos de Tesoura, Peixe Grande), realçados por uma cenografia que mescla o clássico literário Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, além dos contos dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. A conspiração estética prepara o terreno para o embate inusitado entre o Bem e o Mal, aqui representados pelo mundo onírico de Ofelia verus a rigidez ditatorial de Vidal. Em suas tarefas como a Princesa, ela irá se deparar com criaturas horripilantes e assustadoras, mas que apesar de suas aparências perceberá menos vilões que os seres humanos de carne e osso.


Esse sutil e meticuloso processo de humanização de determinado microcosmo caótico e violento, quando normalmente o universo mítico da fábula humaniza o reino animal, é uma das mais fascinantes inversões da obra de del Toro. Ao escolher ou decidir se o mundo de Ofelia é ilusão ou realidade, ao optar pelo otimismo ou pessimismo, pois o enfoque aqui é ambígüo, o público também analisará algumas das suas convicções e certezas, observando de fora para dentro de si mesmo. Porque embora muito longe de ser panfletário, O LABIRINTO DO FAUNO é uma radiografia mágica e sensível da condição humana.

O filme recebeu uma grande quantidade de prêmios internacionais, entre eles os Oscars de Melhor Fotografia (Guillermo Navarro), Direção de Arte/Decoração (Eugenio Caballero e Pilar Revuelta) e Maquiagem (Davi Martí e Montse Ribé), além de sete Prêmios Goya, o Oscar do cinema espanhol: Roteiro Original, Atriz Revelação, Fotografia, Montagem, Efeitos Especiais, Som e Maquiagem.



segunda-feira, 14 de abril de 2008

No Escurinho: UM PLANO BRILHANTE


Uma Receita Contra a Mesmice

Cotação: * * * 1/2

Se existe um gênero no qual os produtores investem seu dinheiro sem medo é o thriller. Mexendo com os nervos da audiência eles garantem o investimento e várias noites de sono tranqüilo. O filme de suspense caiu no gosto do público há tempos, desde que Sir Alfred Hitchcock explorou todas as suas possibilidades, vertentes e variações. Além disso, a presença de astros veteranos ou na berlinda, a convocação de um diretor competente e um script elaborado com um mínimo de engenhosidade garantem o sucesso da receita.

É o exemplo de UM PLANO BRILHANTE (Flawless), estrelado por Demi Moore e Michael Caine, sob a direção do britânico Michael Radford. O roteiro original de Edward Anderson tem o mérito de conferir aos personagens principais uma sutileza pouco comum ultimamente, neste tipo de espetáculo. Situado na Londres dos anos 60, o enredo nos apresenta Laura Quinn (Moore), executiva de uma poderosa firma de diamantes, cuja ascensão profissional vem sendo barrada por ser mulher. Aos poucos, ela se aproxima do Sr. Hobbs (Caine), o velho zelador que foi descartado após toda uma vida dedicada à empresa. Juntos eles irão responder ao preconceito e à demissão esquematizando um golpe genial: o roubo de uma valiosíssima coleção de jóias, se vingando da corporação que friamente os menosprezou.


Radford (O Carteiro e o Poeta, O Mercador de Veneza, 1984), um realizador que costuma driblar a mesmice, conduz a narrativa com muita habilidade e acerta em cheio no ângulo da abordagem. Ao invés de apostar na trama, na armação do plano mirabolante, constrói o filme baseado na fragilidade dos protagonistas frente à estrutura que os devora. A impressão de que a tarefa está acima de suas capacidades e que andam sempre à beira do abismo, remete à tensão ao nível psicológico, garantindo uma densidade que confere equilíbrio ao todo.

Porém, em nenhum momento tal visão minimiza a diversão que todos procuram em histórias assim, muito pelo contrário. Ao final, a sensação que fica é da rara mistura de complexidade emocional e ação mirabolante, agradando aos olhos e à inteligência. Além do prazer de sempre rever a altivez natural de Michael Caine, e a grata surpresa de constatar que Demi Moore, amadurecida, tornou-se capaz de representar com sensibilidade, alcançando alturas que ninguém julgava possível.

sábado, 12 de abril de 2008

Grandes Cineastas: KAR WAI WONG


Muitas vezes os cinéfilos lamentam não contar mais com os grandes diretores do passado. Mais de uma geração de mestres passou, parecendo não haver seguidores à altura de suas lições e segredos. Há quem chame isso de saudosismo. Outros apenas encaram como uma constatação óbvia e inevitável que o cinema atual parece ter se desvirtuado, saído dos trilhos ao desprezar às experiências anteriores em favor de efeitos e artificialismos. Mas nem tudo está perdido, pois a capacidade de renovação felizmente continua no cerne de qualquer manifestação artística. É o caso do chinês Kar Wai Wong, cuja filmografia vem se constituindo num dos alicerces do cinema moderno, com uma sólida carreira que já acumula quinze filmes.

Nascido em 1956, Wong viveu em Shanghai porém, aos cinco anos, sua mãe emigrou para Hong-Kong, abandonando o pai e outros dois filhos, levando-o junto na empreitada. Sem falar o dialeto local, o cantonês, até os 13 anos, sua infância foi solitária e difícil. Nessa época começou a demonstrar uma inclinação pela arte, em especial pelo desenho, mas logo seu foco era outro. Aos 24 anos, após se formar como desenhista gráfico, o ingresso num curso de preparação para roteiristas mudou o rumo de sua vida. As imagens que o fascinaram tanto na juventude agora podiam ter movimento. As idealizações e sonhos dos anos de solidão, a necessidade de compartilhar e comunicar, inibida por tanto tempo, estava prestes a ganhar forma cinematográfica.

Após seis anos trabalhando como fazedor de roteiros, começou a dirigir filmes publicitários e clipes musicais. Sua primeira chance nos longametragens veio em 1988, ao rodar WONG GOK KA MOON (inédito no Brasil), segundo a crítica internacional uma estimulante mistura de paixão e crime emoldurada pelos neons de Hong-Kong. Logo no seu segundo filme, DIAS SELVAGENS (A Fei Jing Juen), de 1991, o exorcismo de velhas inseguranças se faz presente: um rapaz descobre que não foi criado por sua mãe biológica, enquanto fica indeciso também pelo amor de duas mulheres. A sobrevivência e instabilidade das relações sentimentais ganham seu primeiro capítulo, sob um estilo visualmente suntuoso, com uma busca pelo apuro visual através da iluminação.

A evolução gritante de filme para filme culminou com a obra-prima AMOR À FLOR DA PELE (Fa Yeung Nin Wa), de 2000, onde dois vizinhos descobrem que seus respectivos cônjuges mantém um caso, iniciando também um relacionamento romântico, temperado pelo choque entre a solidão e o desejo. Com técnica impecável, tudo é tratado com extrema sutileza: imagens lentas, o ritmo da música, a suavidade da iluminação, o sexo apenas sugerido e não explícito, deixando a intensidade por conta das emoções latentes no interior do casal, numa atmosfera onírica e melancólica. Esse domínio consciente da forma em função do conteúdo, essa maneira de pensar as soluções visuais como contraponto à narrativa, revelam um artista maduro e capaz de manipular os instrumentos que o cinema oferece. O reconhecimento veio através de uma enxurrada de 31 prêmios internacionais, em diversos festivais e mostras.

Embora creditado como roteirista de quase todos os seus filmes, sabe-se que isso não passa de uma convenção, pois Wong não se utiliza de roteiros e sim de uma idéia inicial que desenvolve no curso das filmagens. Segundo ele, seu estilo fragmentado de contar uma história é influenciado pelo romance The Buenos Aires Affair, do escritor argentino Manuel Puig, que adaptou às telas, em 1997, como FELIZES JUNTOS (Chun Gwong Cha Sit), se tornando até hoje por este trabalho o único chinês a receber um prêmio de direção no Festival de Cannes. Era uma questão de tempo surgirem os convites internacionais.

Em 2007, rodou UM BEIJO ROUBADO (My Blueberry Nights), seu primeiro filme em língua inglesa, contando com Jude Law e Norah Jones no papéis principais. Mais que uma mistura de drama e romance, é um delicado e tocante estudo sobre as distâncias amorosas e os possíveis caminhos para superá-las. Muitos o acusaram de fazer concessões ao mercado americano no tratamento açucarado do enredo, transformando-o num road-movie tipicamente ianque. No entanto, aqueles que realmente enxergam a profundeza e não a superfície, notarão que todos os traços artísticos e humanos típicos das suas principais obras estão presentes.

O que demonstra que na filmografia de Kar Wai Wong nada se perde, tudo se recria, tudo se transforma.